https://adepbahia.org.br/Noticia/10152/ADEPBA-realiza-painel-sobre-Memorias-e-Resistencia-Negra-na-Bahia
03/12/2024
Na última sexta-feira de novembro, dia 29, a Associação dos Defensores Públicos da Bahia (ADEP-BA) promoveu a roda de conversa " 20 de Novembro: memória, resistência e expressão negra na Bahia", UNEB CEPAIA - Centro Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos. O encontro reuniu associados (as), defensoras e defensores públicos e representantes da sociedade civil, para debater políticas públicas voltadas ao enfrentamento do racismo e à valorização da cultura negra.
A presidente da ADEP-BA, Dra. Bethânia Ferreira, conduziu a abertura, momento em que ressaltou a importância de ações institucionais no combate ao racismo. "Este encontro é para reafirmar nosso compromisso com um futuro antirracista. A criação da Comissão de Prerrogativas da ADEP-BA e o Edital nº 01/2024 para a seleção de seus membros titulares são passos concretos nesse sentido. Debates como este ampliam o entendimento sobre o papel da Defensoria Pública na promoção da igualdade racial", afirmou.
Já a mediação da mesa ficou por conta da defensora pública Dra. Raquel Rocha. Na sequência, Dra. Laissa Rocha abordou temas como ancestralidade, educação e resistência. Em sua fala, destacou a necessidade de enfrentar o racismo desde a infância e a importância do sentimento de pertencimento coletivo.
"Enquanto mulher negra, muitas vezes me senti isolada, sem espaços para dialogar com quem realmente compreendesse as dificuldades que enfrentamos. Por mais que existam aliados, a vivência é única e transforma nossa percepção. Quando entendi isso, percebi que meu trabalho em prol dessa luta ganhou outra dimensão", afirmou Laissa.
O defensor público Dr. Alexandre Cabral destacou a urgência de ações coletivas no enfrentamento ao racismo estrutural, enfatizando a importância da resistência intergeracional. " Meu avô e meu pai enfrentaram desafios que hoje eu não preciso viver graças à luta deles. A resistência é nossa herança, espero que as próximas gerações não enfrentem as dificuldades que eu enfrento hoje.” contou.
O evento discutiu políticas públicas essenciais para o enfrentamento ao racismo, e pautou ainda, factuais como o encerramento da programação cultural “Samba de São Lázaro” e o contraste social no acesso à moradia na região da Vasco da Gama/Brotas, em Salvador.
A coordenadora do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB), Maura Cristina, trouxe ao público sua perspectiva pessoal sobre a luta racial."Ainda hoje sofremos perseguições por causa das cotas, e não apenas nas universidades – todas as cotas que conquistamos são questionadas. É curioso, porque, no passado, filhos de agricultores e outros grupos tiveram cotas por décadas sem polêmica. Por isso, não podemos ignorar o racismo ou deixar de refletir sobre ele. O que estamos fazendo aqui hoje, discutindo memória e resistência, é essencial. Mas não basta falar das nossas dores – precisamos agir. Como estamos organizando nossa resistência? Precisamos identificar nossas falhas e nos fortalecer, porque até entre os nossos, às vezes, ouvimos falas que reforçam essa estrutura racista que combatemos. Quando falo de resistência, falo de raça, moradia, educação, segurança e direitos”, concluiu.
O painel também contou com a participação on-line de associados e associadas de Salvador e das Regionais, além de representantes da sociedade civil, como Tássio Silva, estudante de Direito, e Evandro dos Santos, membro da articulação do Centro Antigo.
Encerrando o encontro, a ADEP-BA reafirmou seu compromisso com a promoção da igualdade racial, valorização da história negra e fortalecimento de políticas públicas inclusivas.
Memória e expressão
Depoimento de Maura Cristina, Coordenadora estadual do Movimento Sem Teto da Bahia.
"Eu cresci num ambiente onde, na infância, não entendia bem o que era racismo. Tinha uma amiga branca, que parecia sempre estar em melhores condições do que eu. Ela era arrumadinha, tinha acesso a coisas que eu nem sabia que existiam. Eu achava que ela era mais linda, mais feliz. No Natal, Ano Novo, tudo parecia melhor na casa dela. Enquanto isso, na minha família, todos trabalhavam muito, mas sempre em funções determinadas por um país racista: motorista, babá, empregada doméstica, costureira... Esses eram os lugares que nos eram reservados, que nos empurravam para a periferia da sociedade.
Mesmo assim, tive sorte. Eu era filha de uma mulher negra forte e de um homem que já era presidente da associação de moradores da vila onde vivíamos. Era um lugar pequeno, mas bem organizado. As pessoas da comunidade estavam unidas. Quando vejo tragédias acontecendo em Salvador e outros lugares, penso: quem são as vítimas? São as mesmas comunidades negras e periféricas. É nesses espaços que nos deixam morar.
Minha infância foi marcada por essa realidade. Apesar de viver num bairro pobre e periférico, meus pais me ensinaram valores importantes. Meu pai, além de presidente da associação, tinha ligação com a Frente Negra. Ele nos passava, de forma simples, o senso de organização e resistência. E uma coisa era clara: nós precisávamos estudar. Ele sempre dizia: *'Vocês precisam estudar. A educação é a ferramenta para superar as barreiras que nos impõem."
Essa lição ficou. Crescemos com essa mentalidade. Quando olhei ao redor da minha família, vi que foi graças a essa formação que começamos a mudar nosso destino. Meu irmão entrou na universidade, fez Letras. Outro foi para Administração. E essa transformação começou porque meus pais nos ensinaram que o conhecimento era a única forma de resistir.
Quando me tornei jovem, passei a enxergar modelos de sucesso que me inspiravam. Para mim, era a Iana Rossi, que parecia ser o mais próximo do que eu podia almejar. Isso moldou minha jornada, sempre com foco em conquistar meu espaço.
Hoje, sentada nessa mesa, digo com orgulho: sou parte de um movimento que construiu resistência. Vim do Black Power, do movimento negro, de uma luta constante para ocupar os lugares que nos foram negados. E enquanto, nos Estados Unidos, líderes negros faziam revoluções, aqui no Brasil, nós também resistíamos. É por isso que estou aqui, com a consciência de quem lutou para transformar essa história."
Resistência
Depoimento de Tássio Silva- Estudante de Direito e membro da SAJU- UFBA
"Eu lembro de uma vez em que comprei um salgadinho e saí sem pegar a nota fiscal. Meu pai ficou muito bravo comigo. Na hora, achei aquela bronca desproporcional, não fazia sentido para mim. Mas, com o tempo, percebi que ele queria me proteger. Ele sabia o que poderia acontecer comigo caso fosse questionada ou acusada de algo. Hoje, entendo que aquilo era um ato de cuidado em um mundo que já me colocava em desvantagem, simplesmente por ser quem sou.
Quando vim para Salvador, comecei a sentir o racismo de forma ainda mais evidente. Momentos que, para outros, seriam cotidianos, para mim eram marcados por olhares, desconfianças e abordagens. Saindo de um show do BaianaSystem, eu segurava minha carteira e bolsa com força, preocupada em não dar margem para que alguém desconfiasse de mim. No supermercado, era comum alguém me perguntar onde estavam os produtos, como se eu trabalhasse ali. E, indo para a faculdade, já fui abordada pela polícia simplesmente porque estava em um bairro que, na visão deles, não combinava com o meu corpo.
Essas situações deixam claro que, para muitas pessoas, meu corpo parece estar fora de lugar. Isso me fez pensar profundamente em como romper com esses imaginários racistas que nos colocam sempre à margem. Foi aí que compreendi a importância de espaços como este, que promovem acolhimento, cura e fortalecimento. Esses momentos são fundamentais para que possamos nos aquilombar, conspirar e resistir juntos.
Quero compartilhar também que só consigo sonhar porque tenho plena convicção de que carrego a memória de quem sonhou antes de mim. Pessoas que, mesmo enfrentando barreiras quase intransponíveis, imaginaram um futuro melhor para seus descendentes. Eu me projeto hoje em espaços de poder e decisão – como a universidade – porque alguém sonhou com isso antes de mim. Para minha avó, a universidade era uma utopia. Mas isso não a impediu de acreditar e caminhar, permitindo que, agora, eu esteja aqui.
É essa força, passada de geração em geração, que me move. E é por isso que acredito profundamente na importância de continuarmos criando e ocupando espaços de resistência, sonhos e transformação."
Repúdio contra as Declarações sobre o Sistema de Cotas no TJ-BA
A Associação das Defensoras e Defensores Públicos da Bahia manifestou em 28 de novembro, repúdio às declarações da Desembargadora Rosita Falcão, proferidas durante julgamento no Tribunal de Justiça da Bahia. A magistrada criticou o sistema de cotas afirmando que ele desune a sociedade e sugeriu que a qualidade acadêmica foi prejudicada por sua implementação, associando indiretamente problemas na educação pública à presença de estudantes negros.
A Adep Bahia rejeita tais falas por considerá-las racistas e sem base em dados, reforçando que as dificuldades da educação pública decorrem de fatores estruturais, como falta de investimento. Ressalta ainda a importância das cotas como política de reparação histórica, especialmente na Bahia, onde mais de 80% da população se declara negra, mas isso não se reflete em cargos públicos ou no ensino superior.
A entidade reitera que o sistema de cotas promove justiça social e está em consonância com a Constituição e tratados internacionais. Finaliza enfatizando que racismo é crime e repudiando qualquer prática discriminatória.